Publicado em: 21-02-2017

Médicos Sem Fronteiras recusa doação da Pfizer para evitar “ciclo vicioso” de preço alto

By | 21/02/2017

A organização humanitária internacional Médicos sem Fronteiras (MSF) recusou um milhão de vacinas doadas pela empresa americana Pfizer, uma das maiores farmacêuticas do mundo. A vacina, que protege contra 13 variações de uma bactéria que causa pneumonia, seria usada para imunizar bebês e crianças de países que passam por situações de conflito, como a Síria, no Oriente Médio, o Sudão do Sul e outros países africanos.

Com a recusa, a organização quer mostrar que doações podem ser melhores para a indústria farmacêutica do que para os necessitados e faz parte da estratégia de interromper um ciclo vicioso criado pelas farmacêuticas manter o alto custo dos medicamentos: “As farmacêuticas doam para depois falar que os outros consumidores têm de pagar por isso, já que elas fazem tantas doações”, diz a americana Kate Elder, conselheira de política de vacinação da MSF em Nova York.

No Brasil, a vacina que virou o centro da polêmica, chamada Prevenar 13, não está disponível na rede pública, apenas em clínicas privadas. A dose custa, em média, R$ 280 em clínicas paulistanas. Isso significa que, para imunizar uma criança com o esquema completo recomendado pelo fabricante – três doses entre 2 e 6 meses e um reforço entre 12 e 15 meses –, é preciso desembolsar R$ 1.120. Mas a MSF diz que os preços poderiam ser bem menores: “Se aceitamos doações, não temos como prever políticas de longo prazo e ficamos nas mãos dos doadores”, diz Kate Elder.

Confira a entrevista completa de Kate Elder à revista Época:

ÉPOCA – Por que a organização Médicos sem Fronteiras decidiu recusar a doação de vacinas?

Kate Elder – Nós não chegamos a um acordo com a Pfizer. Tentamos por sete anos chegar ao que nós consideramos um preço justo e acessível. Não tivemos nenhum sucesso. Nós somos uma grande instituição humanitária profissional e conseguimos os suprimentos de que precisamos por ter acordos de compras com muitos fabricantes. Se aceitamos doações, não temos como prever políticas de longo prazo e ficamos nas mãos dos doadores.

ÉPOCA – O que seria um preço justo?

Kate – Pelo menos, o menor preço global publicado, que é quanto a Pfizer cobra da Gavi, uma instituição suíça que dá vacinas para países pobres. Para eles, a Pfizer vende por US$ 3,30 a dose. Nós queremos, no mínimo, o preço da Gavi, mas achamos que dá para baixar ainda mais. Em abril de 2015, lançamos a Campanha Fair Shot. Estamos pedindo que a Pfizer e a GSK vendam a vacina contra pneumonia por US$ 1,60 por dose para as entidades humanitárias e para os países em desenvolvimento.

ÉPOCA – É possível para as empresas farmacêuticas produzir vacinas a esse preço?

Kate – Chegamos a esse preço usando informações sobre o lucro que essas empresas têm e sobre preços que competidores futuros estão prometendo praticar. Há uma empresa indiana que está desenvolvendo uma vacina que eles dizem que sairá por US$ 2 a dose.

ÉPOCA – Qual foi o preço mínimo que vocês conseguiram com a Pfizer?

Kate – A Pfizer orçou preços muito diferentes ao longo dos anos. No ano passado, quando tentamos comprar para o Níger, na África, nos passaram o preço de US$ 15,50 por dose. Também já nos passaram 33 euros a dose e, mais recentemente, na Grécia, nós chegamos a comprar de distribuidores locais por 60 euros a dose.

ÉPOCA – A política de preços não é transparente?

Kate – Há realmente muita falta de transparência sobre os preços – e não é só para a gente, mas para os governos também que estão negociando. Eles se esforçam para manter as ocultas as informações sobre os preços. É uma tática deliberada das farmacêuticas para dificultar as negociações.

ÉPOCA – Por que aceitar a doação não é uma boa estratégia?

Kate – As empresas doarão e depois falarão que os outros consumidores têm de pagar por isso. Vira um problema para os governos. No mundo, há 60 países que não introduziram a vacinação de pneumonia no calendário de imunização por causa do preço alto. A doação também desestimula outras empresas a entrar no mercado com produto similares, para competir.

ÉPOCA – Por quê?

Kate – Se outros fabricantes acham que aquele mercado está abastecido por doações, não investem para desenvolver um produto semelhante. Uma das razões pelas quais os preços podem continuar altos é porque não há competição no mercado de vacina de pneumonia. E isso não está restrito à pneumonia. A vacina de HPV só é produzida pela GSK e pela Merck. Essas duas mesmas empresas também são as únicas a produzir vacinas para o rotavírus, que causa diarreia, a segunda causa de morte de crianças, depois da pneumonia. Mais competição favorecerá todo mundo.

ÉPOCA – As doações não podem resolver problemas de curto prazo?

Kate – As doações vêm com muitas amarras, muitas exigências do doador que podem dificultar o uso. Por exemplo, só podem ser usadas em um país específico ou numa faixa etária determinada. Quem recebe a doação tem muito pouco poder de ditar os termos e as condições em que a vacina é mais necessária em termos médicos. Além disso, as negociações para as doações podem levar muito tempo: meses, anos. Não é uma solução rápida.

ÉPOCA – As doações são um negócio melhor para as empresas farmacêuticas do que para os países e entidades que recebem?

Kate – Elas têm benefícios. Primeiro, aparecem para a sociedade de maneira positiva. Todas as empresas têm um departamento de responsabilidade social. O trabalho deles é fazer a empresa parecer como benfeitora. Também há um benefício em relação à dedução de impostos. Isso é algo sobre o qual não sabemos muito. Descobrir como a indústria usa essas doações, em termos de abatimento de impostos, é muito difícil.

Fonte: Revista Época, outubro de 2016

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