Publicado em: 02-12-2018

Cartel de dispositivos cardíacos fraudou licitações por 20 anos no Brasil

By | 02/12/2018

Reportagem do projeto Implant Files, do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ)*, revela como a maior fabricante mundial de dispositivos cardíacos fraudou licitações e estimulou cirurgias desnecessárias no Brasil ao longo de 20 anos. Entre 1996 e 2016, período contabilizado pelo Departamento de Informática do SUS, o Datasus, 213 pacientes morreram na rede pública de saúde no Brasil em decorrência de problemas em dispositivos cardiovasculares. Uma média de 10 pessoas por ano.

Publicada na revista Piauí e assinada por Allan de Abreu, a matéria, intitulada “Por Dentro do Cartel dos Implantes”, aponta que o empresário Oscar Costa Porto, assim que assumiu a presidência da Medtronic no Brasil, em julho de 2007, encontrou-se com Daniel Eugênio do Santos, presidente da filial brasileira da concorrente direta Biotronik. No encontro, Santos entregou a Porto uma planilha contendo os nomes das três empresas que atuavam no setor (Meditronic, Biotronike e Saint Jude). O documento trazia um cronograma das licitações públicas a serem vencidas por cada uma das três, nos meses seguintes. Tratava-se da planilha do cartel dos dispositivos cardíacos no Brasil, esquema de fraudes que desviava dinheiro público ao superfaturar contratos e promovia cirurgias desnecessárias.

“As quatro multinacionais responsáveis pela comercialização de dispositivos cardíacos no Brasil – posteriormente a Boston Scientific se uniria ao grupo – são suspeitas de fraudar milhares de licitações ao longo de vinte anos. Preços eram superfaturados, e há indícios de participação de médicos e gestores hospitalares – alguns deles recebiam propinas das quatro fabricantes. O esquema é alvo de investigações no Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade, e no Ministério Público Federal. Há também uma ação penal que tramita na Justiça Federal em Minas Gerais”, revela a reportagem, que teve acesso a documentos sigilosos do próprio Cade e da Polícia Federal.

A Medtronic, maior do mundo em próteses cardíacas, tem valor de mercado estimado em US$ 120 bilhões, com 91 mil funcionários em 160 países. No Brasil, tem escritório em São Paulo e fábricas em Ribeirão Preto (SP) e São Sebastião do Paraíso (MG). E coube a ela confessar seus crimes em um acordo de leniência com o Cade e o Ministério Público Federal.

O esquema de fraude das licitações das próteses foi revelado em janeiro de 2015. Duas CPIs foram instaladas no Congresso – uma na Câmara, outra no Senado –, e outra na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Paralelamente, o Cade e o MPF passaram a investigar o caso.

Ouvido na CPI da Câmara, Oscar Porto expôs dados mercadológicos da Medtronic e negou a prática de qualquer irregularidade por parte da multinacional. As CPIs acabariam isentando de culpa a Medtronic, mas as investigações do MPF e do Cade reuniam provas da participação direta da empresa. Por isso, no segundo semestre de 2015, a filial da Medtronic no Brasil procurou o Cade e o MPF e propôs um acordo de leniência, em que a empresa confessou seus crimes e se comprometeu a colaborar com as investigações, em troca de redução da pena, tanto criminal quanto administrativa. O próprio Oscar Porto também assinou acordo de delação com o Cade e o MPF em outubro de 2016.

“No documento, inédito até aqui, doze dirigentes da empresa, incluindo Porto, narram em detalhes como o cartel de próteses cardíacas operou no Brasil entre 2004 e 2015”, afirma a reportagem.  O esquema era automaticamente renovado a cada ano.

“Pelo fato de os médicos terem o poder de direcionar os descritivos técnicos dos editais e até mesmo desclassificar empresas nos certames, manter um bom relacionamento com esses profissionais era vital para o cartel” analisa o texto. “Por isso, as quatro empresas costumavam doar verbas para hospitais públicos e patrocinar entidades da classe médica.

A reportagem lembra que Oscar Porto deixou a Medtronic no ano passado e não quis dar declarações sobre o caso, assim como Daniel Eugênio dos Santos, ex-presidente da Biotronik no Brasil. Dos doze funcionários da Medtronic investigados pelo Cade e pelo MPF, a reportagem apurou que três permanecem na empresa – os demais foram demitidos ou pediram desligamento da empresa.

A Biotronik disse que colabora com a investigação do Cade e do MPF e que não dará declarações antes da conclusão do caso, o que não tem data para ocorrer. A Abbott, que recentemente adquiriu a Saint Jude, informou que “está cooperando com as autoridades”. William Krinickas, vice-presidente da Boston Scientific do Brasil, negou irregularidades na conduta da empresa. “Temos o compromisso de agir com ética e integridade. […] A Boston possui um código de conduta […] e diversos procedimentos internos que instruem seus colaboradores e parceiros de negócios a não se envolverem em condutas anticompetitivas de qualquer tipo”, afirmou em nota.

* O Implant Files reúne 252 profissionais de 59 veículos de 36 países, que investigaram dezenas de fabricantes e distribuidoras de dispositivos médicos em todo o mundo. No Brasil, participam da apuração a revista piauí e a Agência Pública. Esta reportagem foi produzida por Allan de Abreu, Bernardo Esteves, Camila Zarur, José Roberto de Toledo, Vitor Hugo Brandalise, Kellen Moraes, Flávia Tavares, Marcella Ramos, Kátia Regina Silva.

A reportagem completa pode ser lida aqui

 

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