O ideal, e o esperado, é que os órgãos públicos de saúde estivessem integralmente capacitados para subsidiar a defesa técnica do Estado, informando se o produto reclamado judicialmente é disponibilizado no âmbito do SUS, indicando como e onde poderia ser fornecido; se o produto não está à disposição do paciente, deveriam ser esclarecidas as alternativas terapêuticas então disponíveis na rede pública, apontado as formas de acessá-las.
O objetivo seria minimizar o impacto das ações judiciais sobre os órgãos de saúde, com a (re)inserção dos litigantes à rede pública de assistência farmacêutica, mitigando gastos públicos desnecessários e exercendo maior controle sobre a evolução terapêutica dos pacientes.
Infelizmente, não atingimos este grau de eficiência. Por isso, a COJUSP propõe a utilização de algumas ferramentas de trabalho e estratégias processuais, que já se mostraram exitosas, na tentativa de subsidiar a atuação dos Procuradores do Estado nessa seara.
Vale a pena estudar os temas mais recorrentes nas ações judiciais, para imprimir nova dinâmica à defesa estatal.
- A BASE CONCEITUAL
- O Ministério da Saúde realiza, regularmente, a revisão da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), estabelecendo o rol dos remédios que integrarão os Componentes Estratégico, Básico e Especializado da assistência farmacêutica do SUS, para dispensação final pelos Estados e Municípios.
- Além disso, Estados e Municípios podem incorporar outros medicamentos além dos previstos na RENAME, com base em seu poder discricionário e à vista das necessidades de sua população, para compor as respectivas Relação Estadual de Medicamentos Essenciais (RESME) e Relação Municipal de Medicamentos Essenciais (REMUME).
- Esse é o arcabouço terapêutico oficial da rede pública de saúde, que pode sofrer variações de Estado para Estado e de Município para Município.
- Embora não faça parte do SUS, deve ser também considerado, para efeito da defesa estatal, o elenco de medicamentos que compõe o Programa Farmácia Popular, do Governo Federal, para dispensação graciosa ou venda subsidiada à população.
- A PESQUISA
- As listas atualizadas dos medicamentos dos Componentes Estratégico, Básico e Especializado da Assistência Farmacêutica do SUS, da Relação Estadual de Medicamentos Essenciais de São Paulo, assim como o elenco do Programa Farmácia Popular estão disponíveis no link Assistência Farmacêutica deste site.
- Para facilitar a pesquisa, a CODES, da Secretaria de Estado da Saúde, criou aplicativo, indicado como “Medicamentos fornecidos pelo SUS” dentre as Ferramentas de Trabalho deste site, que permite identificar aqueles dispensados no âmbito do SUS, tanto pelo nome do princípio ativo, como pelo nome comercial.
- Essas verificações não dispensam a conferência da REMUME do município de residência do autor da ação judicial, dada a liberdade dos entes municipais de incorporarem outros medicamentos de interesse de sua população, além da RENAME.
- Nota COJUSP: o fato de um medicamento constar do elenco terapêutico do SUS não implica, necessariamente, seu fornecimento para todos os casos, apenas por conta de uma prescrição médica. É necessário verificar se os respectivos protocolos clínicos e programas da rede pública contemplam a dispensação do medicamento para a situação clínica do paciente, indicada pela referência do Código Internacional de Doenças (CID), pois não é raro que um medicamento seja fornecido para um específico CID, e não para outro congênere.
- A DEFESA
- Confirmado que o medicamento reclamado está disponível na rede pública de saúde e é fornecido para o CID indicado, a defesa estatal deverá, objetivamente, afirmar o fato, indicando como e onde obtê-lo, ainda que em serviço de saúde de outro ente governamental, demonstrando a falta de interesse processual do autor (CPC, art. 485, VI).
- O objetivo é a inserção do paciente ao SUS, para que a dispensação se faça no âmbito da rede pública, na forma e sob as regras de controle a que se submetem todos os demais usuários do Sistema, de forma equânime e sem nenhum privilégio.
- Deve ser esclarecido que eventual decisão judicial que determine o fornecimento do medicamento, sem a inserção voluntária do paciente ao SUS, causará prejuízos econômicos e organizacionais ao ente estatal, que se verá obrigado a se valer de recursos orçamentários e estrutura administrativa próprios para aquisição e fornecimento particularizados do mesmo produto que já está disponível na rede pública de saúde.
- AS PROVAS
- Como a incredulidade do Judiciário ainda é grande em relação aos temas que envolvem a saúde pública, a ponto de ter se tornado corriqueira a afirmação de que o autor da demanda não escolheria a via da ação judicial se realmente o medicamento estivesse disponível no SUS, é indispensável a produção de provas, dentre as quais destacamos:
- – a prova documental, que desde logo deve acompanhar a defesa estatal, consistindo nos impressos que demonstrem a disponibilidade do medicamento na rede pública, tais como cópia de protocolos clínicos, listagem de medicamentos, dentre outros, todos disponíveis neste site;
- – a expedição de mandado de constatação, a ser cumprido por Oficial de Justiça, para demonstrar que o serviço de saúde apontado na defesa estatal, ainda que de outro ente governamental, tem a atribuição de dispensar o produto reclamado em juízo;
- – a prova oral, a ser criteriosamente avaliada à vista das peculiaridades locais, que poderá consistir na oitiva do gestor de saúde pública, na tomada do depoimento do médico prescritor ou mesmo do próprio paciente, autor da ação judicial.
- O PREJUÍZO DA DECISÃO DESFAVORÁVEL
- A decisão que obriga o Estado a fornecer medicamento já disponível na rede pública, sem que ocorra a inserção voluntária do paciente nos programas de assistência farmacêutica do SUS, causa prejuízos de três ordens ao ente público:
- – o econômico/financeiro, pois obrigará o Poder Público a utilizar seus recursos orçamentários, em receita corrente líquida, para adquirir o mesmo medicamento que já se encontra nos dispensários do SUS, cujo fornecimento à população é garantido por fonte de financiamento específico;
- – à saúde pública, pois a mera entrega de medicamento contra apresentação de uma receita médica em nada se assemelha à prestação da assistência farmacêutica, compreendida como um conjunto de ações voltadas também ao acompanhamento da terapia medicamentosa e avaliação de seus resultados, tanto sob o prisma individual, como coletivo;
- – à gestão pública, pois obrigará os órgãos públicos a licitar rotineiramente a compra particularizada de um produto que já é disponibilizado pela rede pública, com o consequente ônus de manter a logística de recepção, armazenamento e dispensação final ao autor da ação judicial.
᚛ O MEDICAMENTO ESTÁ DISPONÍVEL NA REDE PÚBLICA DE SAÚDE
- A BASE CONCEITUAL
- São frequentes as ações judiciais em que se busca o fornecimento de uma específica marca de um medicamento, também disponível no mercado com outras denominações comerciais ou apenas com a indicação de seu princípio ativo.
- Nestes casos, deve-se lançar mão dos conceitos introduzidos pela Lei nº 9.787, de 10 de fevereiro de 1999 (a chamada Lei dos Genéricos), que alterou a Lei 6.360/76, e que poderiam ser assim traduzidos:
- – Medicamento de Referência: é o medicamento inovador, o que primeiro conseguiu registro perante a ANVISA, comprovando sua segurança, eficácia e qualidade por ocasião do registro. É sempre identificado por específica marca comercial.
- – Medicamento Similar: é o medicamento que possui o mesmo princípio ativo do Medicamento de Referência, a mesma concentração, via de administração, posologia e indicação terapêutica, podendo diferir apenas em características relativas ao tamanho e forma do produto, prazo de validade, embalagem, rotulagem, excipientes e veículos. É sempre identificado por nome comercial.
- – Medicamento Genérico: geralmente produzido após o término da proteção patentária do Medicamento de Referência, é dele cópia fiel, pretendendo ser com ele intercambiável, através de testes de bioequivalência apresentados à ANVISA. São sempre identificados apenas por seu princípio ativo.
- Nota COJUSP: a ANVISA, por meio da Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 58, de 10 de outubro de 2014, definiu as medidas obrigatórias para que os detentores de registro de Medicamentos Similares comprovem a intercambialidade com o respectivo Medicamento de Referência, através de estudos comparativos. O objetivo é identificar aqueles que posam ser considerados equivalentes terapêuticos e, consequentemente, intercambiáveis entre si.
- A PESQUISA
- Existem alguns sites comerciais, como o consultaremedio.com.br, com link disponível dentre as Ferramentas de Trabalho deste site, que relaciona, tanto a partir de uma marca, como a partir do princípio ativo, os Medicamentos de Referência, os Similares e os Genéricos, quando existentes. Isso permite conhecer o universo em que se insere uma específica pretensão judicial.
- Vale a pena também a consulta à relação dos Medicamentos Similares que foram considerados pela ANVISA intercambiáveis com os respectivos Medicamentos de Referência, na forma definida pela RDC nº 58/2014, clicando aqui.
- Identificado o nome do princípio ativo de um medicamento, é possível verificar sua disponibilidade na rede pública de saúde.
- Para facilitar a pesquisa, há o aplicativo criado pela CODES, da Secretaria de Estado da Saúde, indicado como “Medicamentos fornecidos pelo SUS” dentre as Ferramentas de Trabalho deste site, que permite identificar os medicamentos fornecidos no âmbito do SUS, tanto pelo nome do princípio ativo, como pelo nome comercial.
- A DEFESA
- Confirmado que o medicamento reclamado de específica marca está disponível na rede pública de saúde, quer sob outra denominação comercial, quer na sua formulação genérica, e é fornecido para o CID indicado, a defesa estatal deverá, objetivamente, afirmar o fato, indicando como e onde obtê-lo, ainda que em serviço de saúde de outro ente governamental, demonstrando a falta de interesse processual do autor (CPC, art. 485, VI).
- Afinal, se o objetivo é garantir a assistência farmacêutica ao paciente, não há espaço para escolhas particularizadas de marcas comerciais, principalmente quando carentes de justificativas técnicas.
- Valeria assinalar que o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP), através da Resolução nº 278, de 23 de setembro de 2015, estabeleceu que a prescrição de medicamentos deve sempre se dar com a indicação do “nome genérico da substância prescrita” (artigo 1º), vedada, assim, a indicação de marca ou denominação comercial.
- Com o mesmo objetivo, a Comissão Intergestora Bipartide do Estado de São Paulo (CIB), instância máxima do SUS no Estado, editou a Deliberação nº 72, de 20 de dezembro de 2013, estabelecendo que a receita médica de um medicamento, seja ela proveniente de serviço publicou ou privado de saúde, deverá conter a indicação do “nome do princípio ativo de acordo com a Denominação Comum Brasileira – DCB” (artigo 3º).
- Pode-se acrescer ainda que o artigo 3º, parágrafo 2º, da Lei nº 9.787/99 (Lei dos Genéricos) estabelece que as aquisições de medicamentos do âmbito do SUS, em qualquer modalidade de compra, serão sempre feitas em razão do princípio ativo, com preferência à formulação genérica, quando existente. No mesmo sentido, há os artigos 15, parágrafo 7º, e 25, inciso I, da Lei nº 8.666/93 (Lei das Licitações), que proíbem as compras públicas com indicação ou preferência de marca.
- Se a ação judicial tiver por objeto o fornecimento de órteses, próteses ou materiais especiais implantáveis de específica marca, valeria mencionar que o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução nº 1.956, de 7 de outubro de 2010, estabelecendo em seu artigo 3º ser “vedado ao médico assistente requisitante exigir fornecedor ou marca comercial exclusivos”.
- A defesa objetiva, assim, a inserção do paciente ao SUS, para que a dispensação do produto de saúde se faça no âmbito da rede pública, considerando apenas a sua denominação genérica, sem preferência a marcas, fabricantes ou fornecedores.
- Deve ser esclarecido que eventual decisão judicial que determine o fornecimento do medicamento de específica marca comercial, sem considerar a disponibilidade do respectivo princípio ativo na rede pública, além de desrespeitar o princípio da equidade, causará prejuízos econômicos e organizacionais ao ente estatal, que será obrigado a se valer de recursos orçamentários próprios e estrutura administrativa diferenciada para aquisição e fornecimento particularizados do mesmo produto que já se encontra no dispensário da rede pública.
- AS PROVAS
- Para atingir os objetivos da defesa estatal, poder-se-ia lançar mão das seguintes modalidades de provas:
- – a prova documental, que desde logo deve acompanhar a defesa, consistindo nos impressos que demonstrem que o medicamento de marca reclamado na ação judicial está disponível na rede pública, quando considerado o seu princípio ativo, tais como cópia de bulas, protocolos clínicos, listagem de medicamentos, dentre outros, todos disponíveis neste site;
- – o mandado de constatação, a ser cumprido por Oficial de Justiça, para demonstrar que o serviço de saúde apontado na defesa estatal, ainda que de outro ente governamental, tem a atribuição de dispensar o medicamento reclamado em juízo, quando considerado o seu princípio ativo;
- – a prova oral, a ser criteriosamente avaliada à vista das peculiaridades locais, que poderá consistir na oitiva do gestor de saúde pública, na tomada do depoimento do médico prescritor ou mesmo do próprio paciente, autor da ação judicial;
- – a prova pericial, a ser realizada por serviço público de saúde referenciado para esta atuação ou por médico de confiança do juízo, visando demonstrar a mesma eficácia e segurança terapêuticas do medicamento identificado apenas pelo seu princípio ativo.
- O PREJUÍZO DA DECISÃO DESFAVORÁVEL
- A decisão que obriga o Estado a fornecer medicamento de específica marca, desconsiderando que o correspondente princípio ativo está disponível na rede pública, sem que ocorra a inserção voluntária do paciente nos programas de assistência farmacêutica do SUS, causa prejuízos de três ordens ao ente público:
- – o econômico/financeiro, pois obrigará o Poder Público a utilizar seus recursos orçamentários, em receita corrente líquida, para adquirir uma marca específica do mesmo medicamento que já se encontra nos dispensários do SUS, cujo fornecimento à população é garantido por fonte de financiamento específico;
- – à saúde pública, pois a mera entrega de medicamento contra apresentação de uma receita médica em nada se assemelha à prestação da assistência farmacêutica, compreendida como um conjunto de ações voltadas também ao acompanhamento da terapia medicamentosa e avaliação de seus resultados, tanto sob o prisma individual, como coletivo;
- – à gestão pública, pois obrigará os órgãos públicos a licitar rotineiramente a compra de uma específica apresentação comercial de um produto que já é disponibilizado pela rede pública, com o consequente ônus de manter a logística de recepção, armazenamento e dispensação final particularizada.
᚛ O MEDICAMENTO ESTÁ DISPONÍVEL NA REDE PÚBLICA EM OUTRA APRESENTAÇÃO COMERCIAL
- A BASE CONCEITUAL
- A hipótese trata de pretensão judicial de medicamento, identificado por seu princípio ativo, que não consta do arsenal terapêutico do SUS para a patologia indicada, embora a rede pública de saúde ofereça outro medicamento, com outro princípio ativo, prometendo resultados terapêuticos equivalentes.
- É o que acabou denominado como a busca do produto não padronizado ou não incorporado, muitas vezes prescrito em detrimento ou mesmo à revelia do arsenal terapêutico do SUS.
- Essas parecem ser as ações mais recorrentes no universo das demandas judiciais, o que não chega a surpreender. Afinal, se considerarmos a existência de mais de 2.000 princípios ativos diferentes registrados perante a ANVISA, o SUS está logicamente obrigado a realizar escolhas sobre quais medicamentos ofertar à população.
- A responsabilidade de tanto recai sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC), criada pela Lei nº 12.401, de 8.4.2011, com a atribuição de assessorar a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE), do Ministério da Saúde, na incorporação, alteração ou exclusão de medicamentos, produtos e procedimentos pelo SUS, como também construção ou na alteração de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT).
- E a forma de se realizar a Avaliação de Tecnologia em Saúde (ATS) foi legalmente estabelecida. Segundo o parágrafo único do artigo 19-O, da Lei 8.080, de 19.09.1990 com a redação dada pela Lei nº 12.401/2011, a avaliação deverá ser realizada sob o ângulo da eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade da nova tecnologia, no qual se insere o conceito de Medicina Baseada em Evidências (MBE).
- Com isso, a ênfase que então se emprestava às escolhas individuais dos médicos, tiradas da intuição ou da prática clínica diária sobre a melhor terapia a ser empregada em determinado caso, cede passo à prática científica e ao método científico. Passa-se, assim, ao levantamento de estudos de boa qualidade metodológica, na busca das melhores evidências disponíveis sobre a eficácia, efetividade, acurácia e a segurança da nova tecnologia, comparativamente às tecnologias já incorporadas. Paralelamente, são também desenvolvidas análises econômicas, notadamente sobre o impacto financeiro da nova tecnologia e da sua sustentabilidade perante o SUS.
- Em outras palavras, a prescrição de um medicamento não incorporado à rede pública de saúde, apenas por ser uma prescrição médica, não se traduz em uma presunção maior se não vier amparada na Medicina Baseada em Evidências.
- A PESQUISA
- Para profissionais que não tem formação médica ou farmacêutica, a indicação de algum medicamento padronizado pelo Sistema em substituição àquele que é reclamado na ação judicial beira a temeridade.
- No entanto, em razão da recorrência de ações judiciais em busca de novos medicamentos para específicas patologias que são tratadas de forma diversa pelo SUS, alguns órgãos e instituições têm editado notas e fichas técnicas, sempre de caráter abstrato, contendo informações sobre sua indicação terapêutica, a existência de registro na ANVISA, análises pela CONITEC, alternativas terapêuticas existentes no SUS, dentre outras.
- São exemplos:
- – CONITEC – Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS;
- – CONJUR – Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde;
- – CNJ – Conselho Nacional de Saúde, através do sistema E-natjus – Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário;
- – SES/SP – Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.
- Valeria a pena pesquisar também em outros sites de Secretarias de Saúde, ou acessar bancos de notas de evidências científicas mantidos pelos Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NatJus).
- A DEFESA
- Uma vez identificada que a pretensão do autor da ação judicial é a busca de um específico medicamento para o tratamento de patologia, para a qual o SUS já oferece uma alternativa terapêutica, eficiente e segura, a defesa do ente público deveria sustentar o fato e buscar a improcedência da demanda.
- E tal se faz com a indicação precisa das alternativas existentes no Sistema, com informações de como e onde obtê-las, ainda que em serviço de saúde de outro ente governamental.
- Importante também acrescer que, sem evidências científicas que comprovem, de modo peremptório, a imprescindibilidade do medicamento pleiteado e a imprestabilidade da alternativa terapêutica ofertada pelo SUS, o pleito do autor da ação judicial, baseado em simples prescrição médica, torna-se inacolhível.
- Eventuais dúvidas que essa conclusão poderia render foram há pouco solucionadas pelo Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do REsp. 1.657.156/RJ, então submetido à sistemática dos Recursos Repetitivos. Ali, estabeleceu-se o Tema 106, impondo que a “Obrigatoriedade do poder público de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS” estaria condicionada à observância, dentre outros requisitos cumulativos, da “comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;”
Com isso, reafirma-se uma presunção relativa da prescrição médica trazida pela demanda judicial, se não vier ela amparada em evidências científicas que comprovem sua pertinência técnica. - CNJ emprestou destacada importância à questão no correr da III Jornada de Direito da Saúde, de 2019, editando um número expressivo de Enunciados, em certo sentido até redundantes, reafirmando peremptoriamente que a comprovação de aspectos técnicos ligados à prescrição do medicamento não incorporado deve sempre estar baseada em evidências científicas. Sem a observância de tanto, o pleito judicial deve ser rejeitado. A exemplo, pode-se citar:
- ENUNCIADO Nº 14 Não comprovada a ineficácia, inefetividade ou insegurança para o paciente dos medicamentos ou tratamentos fornecidos pela rede de saúde pública ou rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, deve ser indeferido o pedido (STJ – Recurso Especial Resp. nº 1.657.156, Relatoria do Ministro Benedito Gonçalves – 1ª Seção Cível – julgamento repetitivo dia 25.04.2018 – Tema 106).
- ENUNCIADO Nº 18 Sempre que possível, as decisões liminares sobre saúde devem ser precedidas de notas de evidência científica emitidas por Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário – NatJus e/ou consulta do banco de dados pertinente.
- ENUNCIADO Nº 19 As iniciais das demandas de acesso à saúde devem ser instruídas com relatório médico circunstanciado para subsidiar uma análise técnica nas decisões judiciais.
- ENUNCIADO Nº 29 Na análise de pedido para concessão de tratamento, medicamento, prótese, órtese e materiais especiais, os juízes deverão considerar se os médicos ou os odontólogos assistentes observaram a eficácia, a efetividade, a segurança e os melhores níveis de evidências científicas existentes. Havendo indício de ilícito civil, criminal ou ético, deverá o juiz oficiar ao Ministério Público e a respectiva entidade de classe do profissional.
- ENUNCIADO Nº 33 Recomenda-se aos magistrados e membros do Ministério Público, da Defensoria Pública e aos Advogados a análise dos pareceres técnicos da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – Conitec para auxiliar a prolação de decisão ou a propositura da ação.
- ENUNCIADO Nº 57 Em processo judicial no qual se pleiteia o fornecimento de medicamento, produto ou procedimento, é recomendável verificar se a questão foi apreciada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – CONITEC.
ENUNCIADO Nº 59 As demandas por procedimentos, medicamentos, próteses, órteses e materiais especiais, fora das listas oficiais, devem estar fundadas na Medicina Baseada em Evidências – MBE. - ENUNCIADO Nº 75 Nas ações individuais que buscam o fornecimento de medicamentos não incorporados em atos normativos do Sistema Único de Saúde – SUS, sob pena de indeferimento do pedido, devem ser observados cumulativamente os requisitos estabelecidos pelo STJ, no julgamento do RESP n. 1.657.156, e, ainda, os seguintes critérios: I) o laudo médico que ateste a imprescindibilidade do medicamento postulado poderá ser infirmado através da apresentação de notas técnicas, pareceres ou outros documentos congêneres e da produção de prova pericial; II) a impossibilidade de fornecimento de medicamento para uso off label ou experimental, salvo se houver autorização da ANVISA; III) os pressupostos previstos neste enunciado se aplicam a quaisquer pedidos de tratamentos de saúde não previstos em políticas públicas.
- ENUNCIADO Nº 83 Poderá a autoridade judicial determinar, de ofício ou a requerimento da parte, a juntada ao processo de documentos de evidência científica (nota técnica ou parecer) disponíveis no e-NatJus (CNJ) ou em bancos de dados dos Núcleos de Assessoramento Técnico em Saúde (NATS) de cada estado, desde que relacionados ao mesmo medicamento, terapia ou produto requerido pela parte.
- ENUNCIADO Nº 103 Havendo recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – CONITEC pela não incorporação de tecnologia, a determinação judicial de fornecimento deve apontar o fundamento e a evidência científica que afaste a conclusão do órgão técnico, em razão da condição do paciente.
- AS PROVAS
- Nessa modalidade de ação judicial, a produção de provas pelo ente público mostra-se essencial para um bom resultado do litígio. E, para tanto, poder-se-ia lançar mão das seguintes modalidades probatórias:
- – a prova documental, que desde logo deve acompanhar a defesa, consistindo nas cópias de Pareceres, Notas e Fichas técnicas, tiradas de banco de dados de órgãos ou instituições, que demonstrem que a rede pública de saúde oferta alternativas terapêuticas à reclamada;
- – a prova oral, a ser criteriosamente avaliada à vista das peculiaridades locais, que poderá consistir na oitiva do gestor de saúde pública, na tomada do depoimento do médico prescritor ou mesmo do próprio paciente, autor da ação judicial;
- – a prova pericial, a ser realizada por serviço público de saúde referenciado para esta atuação ou por médico de confiança do juízo, visando demonstrar que o medicamento reclamado na ação judicial poderia ser substituído por outro, que se encontra disponível no SUS.
- O PREJUÍZO DA DECISÃO DESFAVORÁVEL
- A decisão que obriga o ente público a fornecer específico medicamento, em detrimento da alternativa terapêutica incorporada ao Sistema, causa prejuízos de quatro ordens distintas:
- – o econômico/financeiro, pois obrigará o Poder Público a utilizar seus recursos orçamentários, em receita corrente líquida, para adquirir um medicamento específico, para um paciente, em prejuízo de terapia disponível no Sistema, cujo fornecimento era garantido por fonte de financiamento específico;
- – à saúde pública, pois a mera entrega de medicamento contra apresentação de uma receita médica em nada se assemelha à prestação da assistência farmacêutica, compreendida como um conjunto de ações voltadas também ao acompanhamento da terapia medicamentosa e avaliação de seus resultados, tanto sob o prisma individual, como coletivo;
- – à gestão pública, pois obrigará os órgãos públicos a licitar rotineiramente a compra de um específico medicamento, com o consequente ônus de manter a logística de recepção, armazenamento e dispensação final particularizada.
- – à ordem jurídica, pois contraria o efeito vinculante à toda magistratura nacional que deriva do julgamento do Tema 106 dos Recursos Repetitivos do STJ.
᚛ A REDE PÚBLICA FORNECE ALTERNATIVA TERAPÊUTICA À RECLAMADA
- A BASE CONCEITUAL
- Dando cumprimento ao preceito do artigo 197 da CF, foi editada a Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, criando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e lhe atribuindo o controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras (artigo 6º).
- Com isso, atribui-se à ANVISA a competência exclusiva de conceder registros de medicamentos e produtos de saúde, através da análise de sua segurança e eficácia, para que possam ser colocados para consumo da população nacional.
E não só. É através do registro do medicamento que a ANVISA exerce o controle sanitário do produto e da sua linha de produção. Possibilita também o controle do preço do medicamento, já que o seu registro se põe como pressuposto para o estabelecimento do preço de sua comercialização perante a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). - Não é por outra razão que nossa legislação é generosa em estabelecer regras proibitivas para evitar o consumo e comercialização de produtos de saúde carente do respectivo registro.
- Exemplo disso é a regra do artigo 19-T da Lei 8.080/90, com a redação dada pela Lei nº 12.401/2011, que proíbe a todas as esferas de gestão do SUS a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de qualquer produto de saúde, nacional ou importado, sem registro na ANVISA.
- Na mesma linha, a Lei nº 6.360/1976 que veda a industrialização, exposição à venda ou entrega ao consumo de medicamentos antes de registrado no Ministério da Saúde (artigo 12), considerando como infrações sanitárias a não observância da proibição (artigo 66).
O Código Penal também tratou do assunto. O seu artigo 273, § 1º-B, com a redação dada pela Lei nº 9.677/1998, criminalizou o ato de importar, vender, expor à venda, distribuir ou entregar a consumo o produto sem registro perante a autoridade sanitária. - O Superior Tribunal de Justiça tratou da questão por ocasião do julgamento do Resp. 1.657.156/RJ, em que editou o Tema 106 dos Recursos Repetitivos, estabelecendo que a “Obrigatoriedade do poder público de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS” estaria condicionada à observância, dentre outros requisitos cumulativos, da “existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência”, o que afastaria, de maneira peremptória, a possibilidade de obtenção deste tipo de medicamento através de uma ação judicial.
- E, importante notar que com tal julgado o STJ não só afastou a possibilidade de se reclamar medicamento sem registro na ANVISA, como foi além, ao tornar defesa a dispensação de medicamento para uso off label, ao inserir a locação “observados os usos autorizados pela agência”.
- Assim, resta vedada a possibilidade de se utilizar do Judiciário para obtenção de medicamento para fim diverso do aprovado em bula, como definido pelo órgão de vigilância sanitária.
- Porém, o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária de 23 de maio de 2019, julgou o Tema 500 de suas Repercussões Gerais, que cuidava especificamente da questão. Na ocasião, firmou-se a seguinte tese:
- 1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.
- 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
- 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:
- (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);
- (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior;
- (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.
- 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União”
- A PESQUISA
- A ANVISA viabiliza rápida consulta sobre a existência de registro de medicamentos, quer a partir da indicação do seu princípio ativo, quer a partir de seu nome comercial.
- A informação pode ser obtida através do link “Medicamentos registrados na ANVISA” relacionado dentre as Ferramentas de Trabalho deste site, ou clicando aqui.
- A DEFESA
- Diante de uma ação judicial em que se busca, do Poder Público, o fornecimento de medicamento sem registro na ANVISA, a defesa estatal não pode deixar de pontuar que toda a legislação infraconstitucional acima citada torna defeso ao ente púbico proceder a importação do fármaco para dispensar ao paciente, a despeito da existência de uma prescrição médica.
- Em acréscimo, deve-se também anotar que essa também foi a conclusão encontrada pelo STJ, ao julgar o Tema 106 de suas Repercussões Gerais, em que ficou definido que o Poder Público só poderia ser compelido judicialmente a fornecer um medicamento, desde que comprovada a “existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência”.
- Mas, em se tratando de medicamento inovador, em que a ANVISA esteja retardando em demasia a apreciação de seu registro? Essa é uma das hipóteses em que o STF anteviu a possibilidade de existir ação judicial de um paciente em face do Poder Público.
- Se dessa hipótese se tratar a demanda judicial, a defesa merece ser realinhada.
- O primeiro argumento a ser suscitado é que este tipo de demanda só poderá ser ajuizada, e “necessariamente”, em face da União. Isso torna Estados e Municípios partes ilegítimas para figurar como réus na respectiva ação, devendo o processo, em relação a esses entes federados, ser extinto sem resolução do mérito (CPC, art. 485, VI).
- Mas, em se tratando de ação ajuizada em face da União, ainda assim poderá ser questionada se realmente existe hipótese de mora irrazoável da ANVISA na apreciação do pedido de registro, então considerado como sendo o prazo superior a um ano, previsto na Lei 13.411/2016.
- Mas, ainda que dessa situação se trate, poderá ser também questionada se preenchidos, cumulativamente, os três requisitos estabelecidos pelo STF, ou seja: (i) pedido de registro do medicamento no Brasil; (ii) registro do medicamento pleiteado em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) inexistência de substituto terapêutico registrado na Anvisa.
- Há, ainda uma segunda hipótese em que o STF entendeu possível a ação judicial em face da União, na busca de medicamento sem registro na ANVISA. É o caso das chamadas doenças raras e ultrarraras, firmemente posto no correr de todo o julgamento, mas que acabou refugindo à redação da tese aprovada em plenário, mal elaborada e com falta de tecnicidade.
- Na verdade, o STF estava querendo se referir às chamadas “drogas órfãs”, isto é, medicamentos utilizados para tratamentos de doenças raras, ultrarraras ou negligenciadas, cuja produção por mais de uma indústria farmacêutica não se mostra economicamente viável, em razão de um mercado consumidor de pacientes estritamente pequeno ou despojado de recursos financeiros.
- Nesses casos, por ser o único medicamento existente no mundo, o STF autorizaria a existência de litígio contra a União, mas desde que (i) a droga esteja registrada por outra renomada agência de vigilância sanitária, e (ii) não exista alternativa terapêutica registrada na ANVISA.
- Embora essa hipótese não esteja claramente contemplada na tese aprovada, a tendência é que o STF venha a reafirmar a conclusão em julgados vindouros, o que tornará o embate estritamente técnico para a União.
- É importante também ter presente que plenamente cabível a aplicação de precedente vinculante do STF, independentemente da publicação do referido acórdão, conforme preceitua o art. 1.035, § 11, do CPC e a jurisprudência consolidada no âmbito daquela corte. A exemplo, pode-se citar: AgR 612.375/DF, Ministro Dias Toffoli, DJe 04.09.2017; AgR-ED 1027677/RS, Ministro Dias Toffoli, DJe 29.08.20117 e ARE 930.647/PR, Ministro Roberto Barroso, DJe 11.04.2016.
- AS PROVAS
- Para Estados e Municípios, a prova a ser trazida ao processo é única: a afirmação de que o medicamento pleiteado não está registrado na ANVISA.
- E vale atentar, por se tratar de uma negativa absoluta, um não fato (o medicamento não tem registro na ANVISA), a parte autora da ação assume imediatamente o ônus de provar o inverso, isto é, que o medicamento detém registro na ANVISA. Se não o fizer, a ação haverá de ser julgada improcedente, já que não demonstrado o próprio fato constitutivo do direito do paciente.
- Em se tratando de ação ajuizada em face da União, por conta das duas hipóteses estabelecidas pelo STF acima citadas, será indispensável lançar mão de provas eminentemente técnicas, notadamente de evidências científicas que possam ou demonstrar a ineficácia e insegurança da droga carente de registro, ou a existências de terapias registradas na ANVISA, que possam ser consideradas alternativas terapêuticas ao fármaco alienígena. E, nessa seara, a produção de prova pericial transparece como inafastável.
- O PREJUÍZO DA DECISÃO DESFAVORÁVEL
- Antever decisão que obrigue especificamente a União a dispensar medicamento não registrado na ANVISA causará indiscutível prejuízos à gestão pública, pois obrigará o Ministério da Saúde a importar rotineiramente o produto, com o consequente ônus de manter a logística de recepção, armazenamento e dispensação final particularizada.
- O mais relevante, no entanto, são os malefícios criados à própria saúde pública e à gestão da atividade sanitária, na medida em que haverá um produto em território nacional sobre o qual a ANVISA não poderá exercer nenhum controle sanitário – nem dele próprio, nem de seu processo de produção.
- Não haverá, também, nenhum controle de preço do medicamento importado, que deverá ser adquirido pela União pelo preço unilateralmente fixado pela indústria farmacêutica produtora, pelo tempo fixado pela decisão judicial.
- E em relação aos Poderes Públicos estaduais e municipais? A partir dos recentes julgamentos do STJ (Tema 106 dos Recursos Repetitivos) e do STF (Tema 500 das Repercussões Gerais), não há hipótese jurídica para as Fazendas Públicas dos Estados e Municípios se virem na contingência de terem de cumprir novas ordens judiciais, que as obriguem a fornecer medicamentos sem registro na ANVISA.
- E, ainda que proferidas decisões nesse sentido, é imperioso que se frise no recurso processual adequado a ocorrência, não só dos prejuízos acima apontados em relação à União, mas principalmente de ruptura da ordem jurídica vigente, pelo desrespeito afrontoso às recentes decisões do STJ e STF.
᚛ O MEDICAMENTO SEM REGISTRO NA ANVISA
- Se considerássemos a origem da prescrição médica e o nível de assistência de um paciente com câncer, não deveriam existir, em regra, ações judiciais em busca de medicamentos oncológicos.
- Por que, então, elas ocorrem, e com frequência?
- PRESCRIÇÃO PÚBLICA
- Tome-se, como partida, o paciente oriundo da própria rede pública de saúde, que ostenta correlata prescrição médica, também pública.
- Como já explicado no link “Assistência Farmacêutica” na barra superior deste site, o controle e tratamento do câncer no âmbito do SUS se faz através da Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas, constituída das “Unidades de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia” (UNACON), para tratamento dos cânceres mais prevalentes no Brasil, e dos “Centros de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia” (CACON), para tratamento de todos os tipos de câncer, buscou-se estruturá-la para garantir que os cuidados perpassassem todos os níveis de atenção (Básica, de Média e de Alta Complexidade) e todos os níveis de atendimento (promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos), com vistas à assistência integral ao enfermo, através da consecução de inúmeros procedimentos, como, v.g., cirurgias, quimioterapias, radioterapias, transplantes, etc., nos quais se insere o fornecimento de medicamentos.
- É importante ter presente que os CACON e UNACON não são farmácias dispensadoras de medicamentos, mas unidades de tratamento, aparelhadas também para fornecer drogas quimioterápicas, desde que inseridas em procedimentos médicos previamente estabelecidos.
Isto é, a prescrição e o fornecimento de drogas quimioterápicas são realizados a reboque de procedimentos previamente estabelecidos, cujo custeio se faz na modalidade de reembolso pelo Ministério da Saúde – mas sempre às vistas do procedimento realizado e não da droga utilizada. - Assim, embora não se possa falar em um programa ou componente de “assistência farmacêutica oncológica”, até por que tal não existe, todos os medicamentos necessários ao tratamento antineoplásico deveriam ser dispensados pelos CACON e UNACON, uma vez que, pelas regras da atual política, esses serviços de saúde tem a liberdade de padronizar suas terapias, com o consequente ônus de adquiri-las e fornecê-las aos pacientes neles cadastrados e atendidos.
- Por isso, a ação judicial dirigida contra algum ente público, que tenha por objeto uma prescrição médica de um CACON ou UNACON, revela uma disfunção por parte do respectivo serviço de saúde, ao omitir o integral tratamento ao paciente, segundo as regras do Sistema.
Compreendido o fato, deveria ser o UNACON ou CACON responsável pela prescrição médica o ente obrigado a realizar o respectivo custeio do medicamento (até para que busque, na sequência, o devido reembolso junto ao Ministério da Saúde), e não o Poder Público, que, no caso, se mostra terceiro estranho àquela relação. - PRESCRIÇÃO PARTICULAR
- Já o paciente, autor de uma ação judicial, que ostente uma prescrição médica particular, deve-se distinguir duas situações. A primeira, se este paciente conta com cobertura contratual da saúde suplementar para seu tratamento, i.e., se tem plano de saúde.
- A pesquisa pode ser realizada através do link “Pacientes com planos de saúde – ANS” dentre as Ferramentas de Trabalho deste site, ou clicando aqui.
- Se dessa hipótese se tratar, todos os medicamentos antineoplásicos, assim como os medicamentos para controle dos efeitos adversos relacionados ao tratamento de câncer e os chamados medicamentos adjuvantes, ou seja, os medicamentos empregados de forma associada aos quimioterápicos com a finalidade de intensificar seu desempenho ou de atuar de forma sinérgica ao tratamento, tem seu custeio garantido pelas operadoras dos planos de saúde, conforme determinado pelo artigo 12, inciso I, “c”, da Lei nº 9.656, de 03.06.1988.
- Neste caso, se o autor da ação judicial fez a opção de contratar seu tratamento com operadora da saúde suplementar, que, neste segmento terapêutico, está legalmente obrigada a custear todos os medicamentos a seu usuário, não existe fundamento lógico ou jurídico para que algum ente público seja demandado para cumprir obrigação alheia.
- Na pior hipótese, caso o ente público seja obrigado a fornecer algum medicamento oncológico a paciente usuário da saúde suplementar, resta garantido ao erário a correspondente ação regressiva contra a operadora do plano de saúde para obtenção da perdas financeiras experimentadas com aquela ação judicial.
- Por último, resta a hipótese do paciente, autor da ação judicial, munido de prescrição médica privada, mas sem cobertura de plano de saúde.
- Embora não se trate de hipótese das mais recorrentes, em razão da pouca probabilidade de um paciente, ainda que considerado seu grupo familiar, ter condições financeiras de fazer frente ao custo de um tratamento oncológico, esse tipo de demanda judicial existe e acaba se caracterizando invariavelmente pela busca do custeio, pelo Poder Público, de específicos medicamentos prescritos por médico particular.
- A questão se resumiria em saber, portanto, se esse paciente teria direito de obter do Poder Público aquele medicamento prescrito por seu médico de eleição ou se, em igualdade de condições com os demais usuários do SUS, poderia somente almejar que seu tratamento se desse junto aos UNACON e CACON da rede pública, segundo as regras do Sistema.
- Embora a questão ainda não tenha alcançado consenso junto aos nossos Tribunais, tem ganhado espaço a tese sobre a necessidade de se respeitar as regras do SUS e as exigências de suas políticas públicas. Prova disso são os Enunciado editados no decorrer das III Jornadas de Direito da Saúde do CNJ, que estabelecem:
- ENUNCIADO Nº 07 Sem prejuízo dos casos urgentes, visando respeitar as competências do Sistema Único de Saúde – SUS definidas em lei para o atendimento universal às demandas do setor de saúde, recomenda-se nas demandas contra o poder público nas quais se pleiteia dispensação de medicamentos ou tratamentos para o câncer, caso atendidos por médicos particulares, que os juízes determinem a inclusão no cadastro, o acompanhamento e o tratamento junto a uma unidade Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia – CACON ou Unidade de Assistência de alta Complexidade – UNACON.
- ENUNCIADO Nº 98 Na oncologia não há dispensação fracionada de medicamentos no tratamento, salvo excepcionalidade descrita em relatório/laudo médico circunstanciado
᚛ O MEDICAMENTO ONCOLÓGICO
- A BASE CONCEITUAL
- A Constituição Federal, ao estabelecer no seu artigo 196 a universalidade e a igualdade como princípios do SUS, garantiu a todos que necessitarem o acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência, independentemente de qualquer outra condição, inclusive as de natureza social ou econômica. Assim, basta ser pessoa e estar em território nacional para ter acesso gratuito às ações e serviços do Sistema Único de Saúde.
- Porém, o Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Resp. 1.657.156 – RJ, editou o Tema 106 dos Recursos Repetitivos, estabelecendo que a “Obrigatoriedade do poder público de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS” estaria condicionada à observância, dentre outros requisitos cumulativos, da comprovação da “incapacidade financeira em arcar com os custos do medicamento prescrito”.
- E acresceu-se essa hipossuficiência deve ser tirada na aferição do custo da terapia a ser adquirida em contrapartida ao necessário para a subsistência do paciente e/ou seu núcleo familiar, ao esclarecer que “Não se exige, pois, comprovação de pobreza ou miserabilidade, mas, tão somente, a demonstração da incapacidade de arcar com os custos referentes à aquisição do medicamento prescrito”.
- Assim, para os medicamentos padronizados pelo SUS, o seu fornecimento será sempre gracioso, observadas as regras do Sistema. Já para os medicamentos não incorporados, cuja dispensação é reclamada via ação judicial, seu fornecimento dependerá da prova da hipossuficiência financeira do paciente e/ou do seu núcleo familiar, notadamente nos casos de idosos ou menores de idade.
- A PESQUISA
- Aferir as condições financeiras de determinado indivíduo ou de seu grupo familiar não é atividade das mais simples, principalmente porque os seus sigilos bancário e fiscal são constitucionalmente protegidos (CF, art. 5º, XII), devendo, por isso, ser preservadas as informações sobre a natureza e o estado de seus negócios, como renda, patrimônio, débitos, créditos, dívidas e movimentação financeira.
- Contudo, não há nada que impeça a busca por provas indiretas ou circunstanciais que possam induzir a demonstração da capacidade financeira de um indivíduo, o que pode ser alcançado principalmente por buscas na internet e nas redes sociais. Mesmo a pesquisa de endereços conhecidos ou de processos judiciais antecedentes podem contribuir para a construção de evidências do fato que se quer provar.
- A DEFESA
- Ainda que baseada em provas indiretas ou circunstanciais, mas que permitam a construção de um raciocínio lógico que enuncie que o autor da ação judicial e/ou seu núcleo familiar detém renda ou patrimônio suficiente para custear o tratamento medicamentoso prescrito, o fato deverá ser afirmado, na busca da improcedência da ação.
- A isto deverá ser acrescido demonstrativos de custo ou orçamentos do medicamento judicialmente reclamado.
- AS PROVAS
- Para atingir os objetivos da defesa estatal, poder-se-ia lançar mão das seguintes modalidades de provas:
- – a prova documental, que desde logo deve acompanhar a defesa, consistindo nos impressos que demonstrem o custo do medicamento reclamado, somado às provas indiretas e circunstâncias que sinalizem a suficiência econômica do autor da ação para o custeio da terapia, indicativas da natureza e do estado dos seus negócios, como renda, patrimônio, débitos, créditos, dívidas e movimentação financeira;
- – a exibição de documentos que pode ser requerido em face do autor da ação, como cópia da declaração de imposto de renda ou outros documentos que, a princípio, estariam protegidos pelo sigilo constitucional;
- – a prova oral, a ser criteriosamente avaliada à vista das peculiaridades do caso concreto, que poderá consistir na tomada do depoimento do próprio paciente, autor da ação judicial, ou da oitiva de testemunhas;
- Isso também não impede, antes autoriza, que o próprio juízo da causa realize consultas aos bancos de dados a que o Poder Judiciário tem acesso, de modo a aferir as reais condições econômicas do demandante ou de seu núcleo familiar.
- Aliás, essa recomendação consta do Enunciado nº 85, aprovado na III Jornada de Direito à Saúde, do CNJ, que previu:
- ENUNCIADO Nº 85 Para aferição da incapacidade financeira do paciente, o Juiz poderá realizar prévia consulta aos sistemas (RenaJud, BacenJud, InfoJud, CNIB etc) e aos bancos de dados à disposição do Poder Judiciário, preservando-se a natureza sigilosa dos dados obtidos e observado o direito ao contraditório (CPC, arts. 9º e 10).
- O PREJUÍZO DA DECISÃO DESFAVORÁVEL
- A decisão que obriga o ente público a fornecer medicamento não padronizado pelo SUS a paciente que detém condições financeiras de custear seu tratamento causa os seguintes prejuízos:
- – o econômico/financeiro, pois obrigará o Poder Público a utilizar seus recursos orçamentários, em receita corrente líquida, para custear medicamento que deveria ser suportado, no caso específico, pelo paciente e/ou seu núcleo familiar;
- – à saúde pública, pois a mera entrega de medicamento contra apresentação de uma receita médica em nada se assemelha à prestação da assistência farmacêutica, compreendida como um conjunto de ações voltadas também ao acompanhamento da terapia medicamentosa e avaliação de seus resultados, tanto sob o prisma individual, como coletivo;
- – à gestão pública, pois obrigará os órgãos públicos a licitar rotineiramente a compra de um específico medicamento a quem poderia custeá-lo, com o consequente ônus de manter a logística de recepção, armazenamento e dispensação final particularizada.
- – à ordem jurídica, pois contraria o efeito vinculante à toda magistratura nacional que deriva do julgamento do Tema 106 dos Recursos Repetitivos do STJ.
᚛ A CAPACIDADE FINANCEIRA DO AUTOR DA AÇÃO PARA CUSTEAR O MEDICAMENTO PRESCRITO
- Haverá algum momento no curso do processo em que a decisão judicial que obriga o Poder Público a uma prestação de saúde não será mais passível de recurso e, por isso, de reforma. Tem-se, aí, a ocorrência do seu trânsito em julgado, ou da formação da chamada coisa julgada, em que aquela decisão forra-se das qualidades da imutabilidade e de indiscutibilidade.
- Esse efeito jurídico de perpetuidade de uma condenação em nada se concilia, deve-se convir, com a natureza das ações judiciais em busca de saúde, sempre caracterizada pela nota da evolução da condição clínica de qualquer enfermo – no seu extremo, alcançando a cura ou atingindo o óbito.
- Em outros termos, como compatibilizar uma condenação transitada em julgado, como, por exemplo, fornecer medicamentos ou disponibilizar equipamentos e serviços de saúde, se o paciente, autor da demanda, deles não mais necessita?
- No passado, a situação causava embates conceituais inconciliáveis e, porque não admitir, campo fértil para ocorrência de muitas fraudes contra o ente público.
- Com o advento do atual Código de Processo Civil, introduzido pela Lei 13.105, de 16 de março de 2015, e com vigência a partir de 18 de março de 2016, o problema pode encontrar solução.
- O seu artigo 505, inciso I, criou a possibilidade de se rever as condenações judiciais continuativas ou de trato sucessivo, isso é aquelas que projetam sua eficácia no tempo, sempre que ocorrerem modificações de circunstância de fato ou direito que serviram de base à decisão transitada em julgado.
- “Art. 505. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo: I – se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença”.
- Assim, sempre que chegar ao conhecimento do ente público a notícia de que algum paciente, autor de ação judicial, não mais necessita dos medicamentos, produtos ou serviços de saúde que eram fornecidos periodicamente, por conta de decisão transitada em julgado, é possível reclamar sua suspensão, parcial ou total.
- E tal se faz através de petição dirigida ao mesmo Juízo, nos próprios autos do processo, com as provas que evidenciem a modificação do estado de fato e de direito em que se baseava a decisão transitada em julgado.
- É importante notar, porém, que essa revisão do que fora anteriormente decidido não implicará no desfazimento da coisa julgada. Ela persistirá pelo simples fato de existir (vide, a propósito, CF, art. 5º XXXVI). O que se altera é a extensão da condenação pela modificação dos fatos subjacentes à ação judicial.
- Mas, como o ente público receberá a notícia de algum paciente, autor da ação judicial, não mais necessita daquele medicamento, produto ou serviço de saúde que há tempos é a ele fornecido?
- Uma das providências essenciais para isso é ter um ente público estruturado para acompanhar a evolução terapêutica daqueles autores de ações judiciais, minimamente exigindo a renovação periódica de receitas e relatórios médicos que atestem a imprescindibilidade daquela prestação de saúde. Na sua falta, o ente público tem o dever-poder de suspender a prestação, até que se demonstre sua imprescindibilidade presente.
- Essa conclusão foi também reafirmada no correr da III Jornada de Direito à Saúde do CNJ, em 2019, como se vê de seu Enunciado nº 2:
- ENUNCIADO Nº 02 Concedidas medidas judiciais de prestação continuativa, em tutela provisória ou definitiva, é necessária a renovação periódica do relatório e prescrição médicos a serem apresentados preferencialmente ao executor da medida, no prazo legal ou naquele fixado pelo julgador como razoável, considerada a natureza da enfermidade, de acordo com a legislação sanitária, sob pena de perda de eficácia da medida.
- O Enunciado nº70 vai além, prevendo a suspensão do atendimento público, se o paciente não retirar medicamentos por três meses consecutivos.
- ENUNCIADO Nº 70 Configura abandono de tratamento a não retirada do medicamento e de outros produtos por mais de 03 (três) meses consecutivos, facultando-se ao demandado a suspensão das respectivas aquisições, devendo, ainda, noticiar ao Juízo do respectivo abandono.
